Kaihan Hamidi, nascido em
1982, é um refugiado Afegão a viver em
Portugal com a família há cerca de dois anos.
Depois de uma passagem pela
zona de Lisboa, Kaihan vive agora em Beja, onde ele e a esposa trabalham, e
onde os filhos frequentam a escola.
A sua alma chama pela pintura
e a maior parte dos seus tempos livres são ocupados entre lápis, pincéis,
aguarelas e telas.
Não é fácil para um cidadão
Afegão ir para outro país com a família, e aí encontrar uma forma de viver e de
estar diferentes, uma cultura diferente e uma sociedade também ela diferente.
Quais foram os seus primeiros
pensamentos e emoções?
Nós somos diferentes, cada um dos membros da família é diferente, reage e sente
de forma diferente. A mudança para Portugal tem sido mais difícil para a minha
esposa do que para mim, porque temos formas de estar e olhar o mundo
diferentes. Para mim, Portugal, não é muito diferente daquilo que imaginei. É
acolhedor, as pessoas são como as nossas pessoas, no Afeganistão e, por isso,
tem sido fácil a minha adaptação. Para os meus filhos foi mais difícil
inicialmente, contudo, e em especial para o meu filho mais velho, está a ser
muito fácil agora, até mesmo com a língua. Está integrado na escola, tem amigos
e pratica judo. Para a mais nova, embora o português já não seja uma barreira
acentuada, existe ainda alguma dificuldade de integração.
Eu venho de uma realidade difícil, que se alterou abruptamente com o a tomada
de Cabul pelos Talibã. A liberdade condicionada, a cultura restrita, a forma de
estar desconfiada e tímida. Portugal é o oposto disso. Aqui é tudo mais fácil.
Certamente não foi fácil para
si encontrar uma nova casa, um novo trabalho, novos amigos, nova vida. A
linguagem também é uma barreira. Neste momento podemos dizer que o Kaihan está
mais ou menos integrado em Beja, tal como a sua família. Quer falar-nos um
pouco desta sua experiência?
A língua é muito difícil para mim, bem mais do que para os meus filhos. Não
consigo aprender, talvez porque também não tenha aulas e tente aprender
sozinho. Contudo, torna-se fácil a comunicação em inglês, pois é raro não nos
conseguirmos fazer entender. No meu trabalho, por exemplo, todos falam inglês,
até porque são várias as nacionalidades a trabalhar ali. Não é bom para mim, no
sentido em que não consigo aprender o português no trabalho, o que poderia ser
uma oportunidade. Mas a língua deixa de ser uma barreira a partir do momento
que o inglês é global.
A sua grande paixão é a
pintura. É autor de quadros de grande qualidade que divulga nas redes sociais.
Certamente que a pintura é sua aliada no encontro de um novo caminho. As suas
pinturas sobre o castelo de Beja ou outros monumentos, são tão precisas, que
têm o poder de nos impressionar profundamente.
Quando começa um trabalho,
sabe exactamente em que direcção vai, ou a inspiração acontece no momento? Pode
falar-nos um pouco sobre o processo criativo e a sua colocação em prática?
Sobre a aguarela, quando inicio um trabalho, sei exatamente aquilo que vou e quero pintar. É tudo muito claro para mim, o que eu imagino, traduzo para a aguarela.
Tal como um fotógrafo, um pintor precisa de ir aos sítios , aos locais, ver com
os próprios olhos e capturar interiormente o que vê e sente. Em Portugal, pela
proximidade e liberdade que existe, tenho a oportunidade de visitar locais
diferentes e de poder pintá-los. Quando isso acontece, é sempre claro, para
mim, aquilo que quero representar.
Por exemplo, relativamente ao Castelo de Beja, eu trabalho muito sobre ele.
Encantei-me nele desde logo. Por ser um local histórico, faço o exercício de
imaginar o que poderia ter sido a vida em torno daquele monumento noutra era.
Crio a história na minha mente e passo-a para a tela.
Sobre o Museu, que é um lugar muito especial, o primeiro pensamento que me
ocorre é sempre sobre Mariana Alcoforado, a janela de Mariana. Sei a história, é
importante saber a história dos monumentos. Os lugares conversam connosco,
todos os lugares têm alguma coisa para nos dizer e ensinar.
Mas voltando à aguarela, é a técnica que considero melhor representar e
preservar os locais históricos, a que faz mais sentido no presente, porque nos
transporta a nós e a esses locais para
um lugar comum. Exemplo disso são os camelos que frequentemente utilizo como
elemento de ligação entre o passado e o presente nas representações do
Afeganistão. Sobre Beja é idêntico, é a Beja Antiga que habita o meu imaginário
artístico.
Existem muitas pessoas em Beja
e noutros locais que já conhecem o seu trabalho. Já fez alguma exposição desde
que chegou ou tenciona fazer?
Quando eu cheguei a Portugal, no primeiro mês, eu pensei que seria fácil
conseguir uma exposição minha. Especialmente em Lisboa. Depois comecei a
perceber a enorme dificuldade que existe em torno disso. Era claro para mim que
iria conseguir uma exposição rapidamente, mas, até hoje, ainda não aconteceu.
Estou consciente da qualidade do meu trabalho e dado o meu percurso no
Afeganistão, onde era um artista conceituado e professor na minha academia de
arte, com mais de uma centena de alunos, pensei que Portugal me permitiria, com
alguma facilidade, continuar esse percurso. O meu povo espera isso de mim,
também. Enquanto referência para eles, sinto essa obrigação e desejo. Quero
honrar o Afeganistão e quero que eles possam olhar para mim como alguém que teve
a coragem de sair do país, de procurar um futuro melhor e ser bem sucedido no
seu trabalho.
Foram muitos os artistas que abandonaram o país, uns estão em França, outros na
Alemanha, no Canadá, na Bélgica… e a maioria está a conseguir expor as suas
obras. Eu serei dos poucos que ainda não teve essa oportunidade, embora possa
estar para breve.
Estive num campo de refugiados no Qatar antes de vir para Portugal e nesse
campo consegui expor. Aqui é tão difícil… e é tão importante para mim.
É difícil para um refugiado
Afegão dar a conhecer o seu trabalho em Portugal e vender os quadros?
Quando decidi vir para Portugal, pensei que era muito fácil. Depois de ter
estado em Lisboa algum tempo, percebi que não seria tão fácil assim e que o
país não era assim tão bom como imaginara, para os artistas plásticos.
Entretanto vim para Beja e ao fim de algum tempo, as coisas começaram a correr
melhor. Direi que não é muito bom, mas que é bom. É importante darmos o melhor
de nós e do nosso trabalho às pessoas, para que elas o possam reconhecer. Sei a
qualidade do meu trabalho, sei o que faço, e portanto, dou sempre o melhor.
Comparando com a altura em que comecei
no Afeganistão, numa situação extremamente difícil e com muitos estudantes, o
que aconteceu foi quase inacreditável, pois vendi uma grande parte de todos os
meus trabalhos. Contudo, ao pensar nos dois países, para mim, é mais fácil
trabalhar em Portugal, pois aqui as pessoas valorizam e reconhecem o nosso
trabalho, e gastam dinheiro para o
adquirir, enquanto no Afeganistão a pintura vem num patamar de fim de linha. As
pessoas apenas compram pintura, quando já têm tudo, até mesmo as classes mais
abastadas. De qualquer forma, não consigo ainda viver só da pintura e sustentar
a minha família, pelo que tive que arranjar um outro emprego a tempo inteiro
numa empresa próximo de Beja.
O que pensa da cultura em
Portugal e em Beja?
Em Portugal, cultura é sobre
liberdade. Existe uma tendência para a cultura que se inicia em criança e que
perdura ao longo do tempo. Música, dança, são expressões livres entre pais e
filhos, entre amigos e grupos de pessoas. No Afeganistão não é possível cantar
ou dançar em público e muitas vezes, mesmo no seio da própria família. Em Beja,
por exemplo, os grupos de amigos juntam-se, cantam normalmente, convivem noite
dentro, e essa forma de estar é também
cultura e é muito interessante.
Dizemos com frequência que o Alentejo tem um horizonte infinito. Concorda?
Concordo. Ao olharmos em volta
parece que nunca acaba. Eu venho de um país e de uma zona com imensas
montanhas, muito bonitas, mas que nos limitam o olhar. Aqui, vê-se sempre mais
além e o pôr-do-sol é imenso.
Agradecemos-lhe bastante a
disponibilidade e desejamos que o Alentejo vos traga tudo aquilo com que
sonharam e que esse horizonte sem fim seja também a vossa visão para a vida.
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