quarta-feira, 25 de novembro de 2020

#euconto ... com João Carlos Soares

 



João Carlos Soares, bejense, 41 anos – Um exemplo de reinvenção

 “Os nossos avós tiveram uma única profissão, aprenderam um ofício ao qual dedicaram toda a sua vida – sapateiros, costureiras, agricultores, vendedores… - os nossos pais, penso que a maioria, já passou por duas ou três actividades profissionais e nós, geração Y e Z, somamos diferentes experiências, díspares entre si, numa necessidade constante de reinvenção, realização e sobrevivência.”

 Deu os primeiros passos como empregado de balcão num bar de Beja (La Bodega) aos 17 anos, tendo passado pelo antigo KARAS -  “com essa idade já não era bem visto pedir-se dinheiro aos pais e a noite sempre empregou gente jovem. Tinha os fins de semana livres e podia trabalhar às sextas e sábados”.

Visionário, e aproveitando um importante nicho de mercado da altura, os estudantes universitários, aliou-se ao pai na abertura do Capa Negra – Centro de Cópias LDA.

“Beja tinha cerca de doze mil estudantes, há vinte anos atrás. Hoje em dia terá perto de três mil, se tanto. Estudava-se por sebentas e fotocópias, a internet estava a dar os primeiros passos e não existiam plataformas, portais, smartphones, ficheiros pdf, digitalizações ou pens usb. Era um mercado apetecível. Claro que com o passar dos anos e com o desenvolvimento tecnológico, foi perdendo importância. Nos dias que correm, poucos serão os estudantes que recorrem ao papel e à fotocópia. Deixou de fazer sentido. Vendemos o espaço na altura  certa e continuei a procurar o meu caminho.”

 Também ele estudante, embora colocando a actividade profissional à frente dos estudos, João Carlos Soares encerrava, aos 23 anos, o seu primeiro negócio, abrindo portas à oportunidade de experienciar a formação profissional.

“Ligaram-me um dia do Centro de Emprego com uma proposta para dar formações de inglês. Embora não tivesse concluído o curso, encontrava-me a frequentar Português- Inglês e… porque não? Na altura a formação era bem paga, cerca de 17€/hora (recibos verdes), actualmente é um mercado demasiado competitivo e, por esse motivo, menos bem pago. Foi uma experiência incrível, nada monótona. Todos os dias me deslocava para uma localidade diferente, nos arredores. Partilhava experiências e vivências com os meus colegas e formandos, mas também com as gentes das terras. Existia familiaridade e proximidade, um sentimento de pertença. Infelizmente vi-me forçado colocar um ponto final nesta actividade devido a um problema de saúde, que me levou a cancelar formações durante algum tempo.”

 João Carlos Soares, sentia, uma vez mais, a necessidade de se reinventar e concorreu a uma vaga para administrativo no Centro de Radiologia de Beja, onde se mantém desde então, já lá vão doze anos. Todavia, nunca abdicou dos seus hobbies de fim-de-semana e continuou a trabalhar em bares e discotecas.

“O avançar da idade foi-me retirando a disponibilidade anímica para o ambiente nocturno, mas não podia abdicar desse extra, então juntei-me ao Nuno Curro, na sua empresa Cocktail Mix Evetos e dei início à realização de eventos, desde os corporativos, aos cocktails e festas sociais, passando pelos baptizados e casamentos. Esta experiência permitiu-me uma maior abertura de portas, tendo surgido um convite irrecusável por parte do Clube Praia Verde, no Algarve – a realização de quarenta casamentos, após ter colaborado com eles em algumas festas de verão.”

 João Carlos Soares abraçava agora outros voos. Porém…

“Este ano (2020) seria o meu melhor ano, tinha cerca de sessenta eventos em agenda, fora aqueles que podem ir surgindo, entre casamentos, festas de verão e outros eventos privados. As empresas de eventos, ao contrário do que se pensa, trabalham doze meses por ano, seis meses a programar e seis a realizar. O trabalho de programação estava terminado, quando em Março fomos surpreendidos pela Covid-19. Toda a nossa programação foi cancelada e até à data zero eventos se realizaram. A quebra é de 100%.”

 E agora?

“Quando nos juntamos com amigos a beber uma imperial, podem surgir boas ou más ideias. Mas as boas deverão sempre ser tidas em conta, principalmente quando culminam na criação de um negócio.”

 O sol já descia no horizonte e o dever familiar marcava a hora.

“Temos que ir andando, fazer o jantar. É sempre uma chatice, os miúdos não gostam, a mulher está de dieta… o ideal seria ter embalagens diferentes no congelador e cada um escolhia aquilo que lhe apetecesse no momento. Os maridos jantam sempre (risos).”

Nascia assim o conceito da mais recente aventura do João, do Francisco e do Luís -  O Aqui Não Comes, uma casa de venda de comida tradicional e caseira ultracongelada, em doses individuais, cujo propósito consiste em facilitar a vida das famílias modernas.

“Inicialmente não fomos muito crentes na ideia. Ultra congelar açorda de gambas, favas com entrecostos, cabidela, cozido de grão (entre quarente e seis outros pratos) faria sentido em Beja? Ultrapassariam os bejenses o estigma da comida congelada? Entenderiam eles o conceito? Em Lisboa faria todo o sentido, em Beja era preciso arriscar. E arriscámos. Abrimos há quatro meses, temos uma ementa de cinquenta pratos e cada um cozinha os seus. Adquirimos um abatedor de temperatura, as arcas e arrendámos um espaço e a experiência tem sido surpreendente. Efectivamente ninguém chega a casa depois das nove da noite com disponibilidade para fazer um arroz de pato, da mesma forma que ninguém confeccionará um cozido de grão para uma só pessoa. E nós temos essa solução. Basta retirar a embalagem desejada do congelador e degustar.”

 Questionado sobre o porquê da aposta num negócio na área da restauração em plena crise económica, João Carlos responde com uma interrogação:

“Se já tinha trabalhado em bares, já tinha tido uma casa de fotocópias, já tinha dado formação, já trabalhava como administrativo e já realizava eventos diversos, porque é que não haveria de experimentar ser cozinheiro?”

Como planos para alavancar o recente negócio, falou-nos da assinatura de contrato para abertura de um espaço em Lisboa e da possibilidade de expansão para outras área geográficas. “Ao fim de dois meses de abrimos portas em Beja, fomos abordados por um empresário da cidade a residir em Lisboa, sobre a possibilidade de levar o negócio para a capital, onde se crê fazer todo o sentido. Desta forma iremos abrir no Campo Pequeno, já no início de 2021 pelas mãos da Margarida e da Rita. No horizonte estão, eventualmente, outras localidades como Setúbal e Faro. As máquinas de venda automática poderão vir a ser equacionadas em pontos estratégicos, como grandes empresas, por considerarmos que faz todo o sentido ter disponível e sempre à mão, uma selecção de pratos tradicionais e caseiros, prontos a satisfazer as horas de refeição. Para Beja os planos passam pela criação de postos de trabalho a curto prazo.”

Sobre o actual momento que o país, a Europa e o mundo atravessam, João Carlos Soares não esconde preocupação e a inquietação face às incongruências.

“Não podemos falar em justiça social quando há sectores mais penalizados do que outros. No sector da restauração, por exemplo, tal como no sector cultural, os apoios são insuficientes, ou inexistentes. Estamos a caminhar para um beco sem saída e hipotecar o futuro. Não só o futuro das empresas, como o nosso futuro e o futuro dos nossos filhos. Quando tudo for nada, o que é que resta? Felizmente a comunidade bejense tem respondido de forma exemplar ao movimento de união a favor do comércio tradicional e da restauração. São eles que fazem funcionar, é a proximidade, a familiaridade, a envolvência e partilha. Têm sido um apoio fundamental e o nosso suporte. Contudo, também os nossos clientes atravessam tempos difíceis e ser-lhes-á impossível continuar a recorrer de forma sistemática aos nossos serviços. Creio que antes de pedirmos mais sacrifícios a quem já muito se sacrifica, se ponderasse a redução do pagamento de IVA por parte das empresas, se colocasse um ponto final na TSU e fossem repostos os horários da restauração e do comércio local. Nenhum de nós tem interesse em que o vizinho feche portas e esta tem que ser uma luta conjunta, de todos por todos. E neste sentido quero deixar a todos os empresários uma mensagem de força, de esperança e coragem.”




quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Conversamos com Ana Carla Faísco

 

A Ana é arquitecta de profissão a trabalhar actualmente na Câmara Municipal de Serpa. Enquanto jovem que saiu de Beja para adquirir competências profissionais, a exemplo de tantos outros, e foi estudar para o Porto, tendo posteriormente regressado a Beja.

Quer estabelecer-nos um paralelo entre o ir e o voltar e as razões inerentes?

O apelo que senti para estudar arquitetura veio naturalmente acompanhado da decisão de sair de Beja e do Alentejo. Na altura as escolas públicas de renome eram as de Lisboa e Porto e a minha candidatura acabou por “calhar”na Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto. Apesar de todos os meus amigos terem optado por Lisboa e Algarve (o que me deixou na altura bastante receosa e triste), o Porto acabou por se revelar uma cidade incrível que guardo com muito carinho no coração… também assim aprendi que o desafio de viver em locais completamente estranhos nos traz tantas oportunidades e o que importa é estarmos de mente e coração abertos e com certeza encontramos pessoas e locais com que nos identificamos e criamos mais e mais memórias… ganhamos “mundo”! A dada altura surge no programa curricular o estágio que podia ser desenvolvido em qualquer local do país, e aí o Alentejo falou mais alto… não me foi aliciante ir trabalhar para um grande atelier de arquitetos no Porto (e tantos que havia!) mas senti uma vontade de aplicar o que aprendi na região de onde sou natural. Colocar-me ao serviço público foi na altura uma opção consciente mas que muitos dos meus colegas não compreenderam. Para mim fazia todo o sentido, sempre me interessei mais pela arquitetura vernacular do que a monumental, perceber como as pessoas viviam na suas casas, que necessidades tinham e como encontraram as soluções… também o desafio de desenhar espaço público e contribuir para o bem-estar de uma população. E lembro também em férias de vir a Beja e andar pelas ruas com a cabeça levantada para olhar os edifícios de alto a baixo, ruas que conheci toda a vida mas agora ganhavam outros significados! Quis perceber melhor o meu Alentejo e também não queria ser mais um número na trágica estatística dos jovens que abandonam esta região, ainda por cima na minha área havia nessa altura um déficit de arquitetos que me permitia ter trabalho… e assim surgiram contatos com a câmara municipal de Serpa, que me acolheu em estágio durante o ano letivo em 1999/2000. E após 17 anos e muitos outros desafios profissionais, sempre em autarquias, eis que numa feliz coincidência regresso a Serpa… vivo em Beja e desenvolvo uma atividade privada em Alcaria da Serra (Vidigueira), é uma triangulação na qual me sinto muito feliz e finalmente consegui juntar a família, o amor e a realização profissional!

No decurso do seu percurso profissional sentiu a necessidade de alargar o âmbito da sua actividade a uma área que embora estando relacionada com a sua formação académica, se reveste de características completamente diferentes.

A Mosaicos d’Alcaria nasceu dessa sua necessidade/inquietação.

Quer falar-nos um pouco deste seu projecto?

Sou arquiteta e desde há muito apaixonada pelos mosaicos hidráulicos: cimento colorido de cores vibrantes e que de forma tão genuína decoravam o chão das casas do Alentejo. Quando em 2012 comprei uma casa antiga para reabilitar, tive muita dificuldade em encontrar soluções em Portugal, que não exigissem deslocação à fábrica e com poucas garantias de prazos de entrega. Porque não tornar uma paixão numa forma de vida, que ainda por cima eleva a tradição e o design português? Senti este apelo de me lançar numa aventura rumo à libertação artística e criativa, contribuindo ainda para o fortalecimento da nossa identidade cultural. No final de 2013 nasceu a marca Mosaicos d'Alcaria, impulsionada pelo concurso de empreendedorismo da Associação Acredita Portugal, que de entre mais de 14.000 projetos, premiou a ideia como uma das 150 semifinalistas e para mim, acabou por ser uma verdadeira plataforma de formação online, que me obrigou a pensar a sério nesta ideia que me perseguia há uns anos! Estruturar objetivos, procurar e estudar a concorrência, definir estratégias de marketing, planear e implementar estudos de mercado, pensar em protótipos para testar a adesão ao produto. O local escolhido para sediar o Atelier foi a casa dos meus avós maternos, também eles em tempos empresários com “venda” e “loja” (taberna e mercearia), em Alcaria da Serra, linda aldeia do concelho da Vidigueira. A experiência tem sido ótima e esta casa é um sítio com uma energia incrível… os mosaicos parecem pertencer-lhe desde sempre! Os clientes visitam um atelier na aldeia, familiar, autêntico e esteticamente apelativo. Num futuro próximo a casa terá também alojamento turístico para visitantes da aldeia, ou para os participantes dos workshops que o Atelier tem intenção de promover, potenciando os recursos endógenos desta característica aldeia do Alentejo. Nos Mosaicos d’Alcaria os sonhos dos clientes ganham vida através da assessoria técnica com simulações e desenhos de infinitos padrões e combinação de cores para revestimento de chão ou paredes, mas não tratamos o mosaico hidráulico como um simples material de construção... está associado a lifestyle e aos conceitos de bem-estar e contemporaneidade. Acredito que o mosaico hidráulico é um produto que vem do passado mas é do futuro, garantia de durabilidade, identidade e decoração únicas.

Para desenvolver qualquer actividade criativa, seja ela um projecto de arquitectura, seja o desenho de um mosaico, é necessário um certo ambiente de paz e tranquilidade.

Concorda?

Sem dúvida! Penso contudo que esta procura se reveste de diferentes características de pessoa para pessoa, o que é verdadeiramente importante é a tranquilidade interior que nos permite que o pensamento criativo cresça e nos direcione para outras atividades que não as tarefas normais do dia-a-dia.

Considera que se vivesse num grande centro populacional lhe seria mais difícil ter momentos de inspiração com a mesma qualidade? Porquê?

É uma questão aparentemente fácil de responder, mas… para quem já teve experiências de vida em grandes centros urbanos, sabe que há uma variedade de ofertas que não temos acesso na nossa região. São também elas inspirações que vamos absorvendo e que depois são importantes no processo criativo que desenvolvemos nos tais ambientes mas calmos e tranquilos. Considero sinceramente que o ideal é viver em família neste Alentejo em que o tempo corre de outra forma, e sempre que possível, dar umas “escapadinhas” a cidades frenéticas e estimulantes… é um equilíbrio necessário, só paz e sossego deixa-nos demasiado confortáveis e a inquietação do espírito é importante!

A Ana é uma pequena empresária que arriscou mas cujo reconhecimento é já evidente. Os seus mosaicos viajam pelo país, estão presentes em inúmeros espaços, compõem armários de recordações de muitas pessoas de renome, e são um património seu e da região, que desta forma é amplamente divulgada.

Da imensidão de mosaicos que tem feito, quer destacar-nos algumas peças que considere mais especiais? Qual o significado que têm para si?

A dada altura senti que os mosaicos hidráulicos não são só um material de construção, daí que a ideia empresarial inicial da fábrica de mosaicos se tenha ajustado ao longo destes 5 anos e é agora o Atelier de mosaico hidráulico “Mosaicos d’Alcaria… casas com Alma!”. Rapidamente me apercebi nas feiras e exposições onde participei que as pessoas tinham uma ligação afetiva a estes quadrados de cimento colorido 20x20cm das casas do sul… as memórias da casa dos avós, a casa na aldeia onde cresceram… e comecei a olhar para eles de forma individual e a levantá-los do chão para que pudessem de novo ir para dentro das casas das pessoas como um símbolo das suas memórias. O Atelier tem vindo a afirmar-se na área decorativa, integrando os mosaicos em peças utilitárias para a casa (quadros, descanso de tachos, tábuas de queijo, mesas, cabides) com ou sem gravações de texto e imagens. O assumir do Atelier vs Fábrica teve um impacto bastante positivo na evolução da empresa, tendo sido lançado um novo serviço de criação de painéis de arte urbana, do qual destaco uma rotunda na baía do Seixal que me deixa bastante orgulhosa, cujo promotor foi a câmara municipal, um conjunto escultórico composto por um muro revestido a mosaicos gravados e de padrão alusivos ao tema “Seixal Saudável”, complementado por uma estrutura em ferro de 5 metros que retrata os moldes com que são feitos os mosaicos hidráulicos. Também os mosaicos individuais gravados têm aumentado a procura, são ofertas com fotografias e composições gráficas de texto e imagens que se misturam nos padrões coloridos e surpreendem sempre quem os recebe. Familiares na época natalícia, comemorações de aniversários e casamentos, eventos culturais, ofertas de grupos corais e entidades coletivas diversas… e muitas personalidades nacionais também já foram “mosaicados”! - Marcelo Rebelo de Sousa, António Costa, Cristina Ferreira, Tim, João Gil, Vitorino ou Pedro Abrunhosa.

Em termos de mercado e divulgação do seu trabalho enquanto artesã dos Mosaicos d’Alcaria, sente algum tipo de constrangimento por estar numa área geográfica interior e distante dos grandes centros?

Não é uma logística fácil, mas as atuais ferramentas tecnológicas permitem a flexibilidade necessária no contato com os clientes... é no entanto inegável que as deficientes infraestruturas de transportes, públicos e privados, criam um distanciamento físico que impede o acesso facilitado ao Atelier. Por algumas vezes sou abordada por potenciais clientes que perguntam se não tenho pontos de venda em Lisboa ou noutros locais mais próximos… não é esta a nossa estratégia comercial, gosto de manter os mosaicos neste ambiente familiar e tranquilo de uma aldeia no Alentejo, dar a conhecer o nosso território a quem vem à procura dos mosaicos. Saem de Alcaria com um belo pão alentejano cozido em forno de lenha e um almoço de panela servido no café do lado. Todos os dias nos confrontamos com dificuldades nas nossas vidas e percursos profissionais, mas esta região é o nosso berço e mantenho a esperança de que o país nos trate com a dignidade que merecemos. O Baixo Alentejo é uma região com grande potencial patrimonial e humano que está permanentemente expectante de investimentos estruturantes que nos dêem o suporte para um desenvolvimento que com certeza saberemos promover. Não nos falta criatividade, paixão e vontade de gritar Alentejo!

 “Alentejo… um abraço que nos une, um sorriso que ilumina, um sonho a realizar…”

Como é que a sua alma artística define esta frase?

Respondo com uma quadra popular presente no cante alentejano e que expressa o meu sentimento por esta região. Apesar das dificuldades, o Alentejo mantém uma orgulhosa alma que nos cativa a cada passeio e a cada pôr-do-sol dolente, um consolo que não se esquece:

“Alentejo é qualquer coisa

Que trago dentro de mim

Onde o meu pensar poisa

Um amor que não tem fim.”



 

domingo, 15 de novembro de 2020

"Arte, Cidades, Alma - A Conexão como Alavanca"

“Onde nós nos ouvimos por dentro é casa também.” – As palavras de Pedro Abrunhosa que deram início à conferência Arte, Cidades, Alma – A Conexão como Alavanca.

Por ser urgente pensar as cidades, a arte, a alma, o património e as gentes, assim como perceber e debater a sua conexão e interligação, enquanto contributo para a alavancagem e construção do novo - entenda-se, futuro – sem deixar de questionar o modo como poderemos avançar, mudar paradigmas e corrigir lacunas sem que se coloque em causa a herança que nos foi sendo doada ao longo dos tempos, convidámos no passado dia 31 de Outubro, Pedro Abrunhosa, Bruno Ferreira e Paulo Barriga para uma tarde de reflexão conjunta no auditório do Centro Unesco, em Beja.

Desafiado a conceber um paralelismo entre versos de Mário Beirão e a presente realidade, Pedro Abrunhosa colocou-nos perante aquilo que, no seu entender, nos resta depois de tudo, o futuro e a luta permanente para que a existência encontre o seu sentido. “A Liberdade, o livre arbítrio, a construção do presente rumo ao futuro”, no sentido em que a estruturação de qualquer sociedade se iniciará sempre no presente, numa óptica de continuidade, resiliência e concepção de um tempo futuro, no qual o homem de hoje já não viverá.

Por esse motivo, afirmou Paulo Barriga, que uma cidade é composta por finas camadas históricas sobrepostas, “uma caixa de ressonância dos tempos passados”, onde a “impossibilidade material da cidade” converge no encontro do património edificado “com o acto cultural e a vivência”.  Desta forma, será “a ligação entre as pessoas, as políticas culturais, o passado de mil folhas sobrepostas (passado arquitectónico, urbanístico e arqueológico) quem transforma a cultura numa Obra”, a qual se designa cidade.

No entendimento de Bruno Ferreira, “o indivíduo, enquanto ser único, desenvolve-se num ambiente multicultural, com regras, padrões, crenças, o que transforma a cultura num processo de intercâmbio entre diversos indivíduos e comunidades, formando assim uma sociedade”. “A cidade é um jardim, cujas flores somos nós próprios, os cidadãos” e nessa perspetiva, será sempre necessária a existência de um “jardineiro dedicado” – referindo-se ao poder local - e artistas “que não sendo flores, são as abelhas que as polinizam, permitindo que sorriam”.

Num encadeamento de ideias, Pedro Abrunhosa propôs-nos reflectir sobre a visão de Platão de que nenhum homem se basta a si mesmo e sobre a possibilidade de “duas pessoas formarem uma cidade”. “Onde existem dois, existe uma relação de reciprocidade e a possibilidade de o acto de um interferir na liberdade do outro”- abordando com clareza a ideia Platónica da construção da cidade justa, uma Cidade-Estado que assumiria todos os valores morais, erguendo-se como a única forma de sociedade possível, segundo uma política que o filósofo definia como “arte que cura a alma e a torna o mais virtuosa possível”.

Pedro Abrunhosa desenvolve a temática: “Alma não é um conceito religioso. É um conceito orgânico. Fazem parte do homem o corpo e a alma que o habita”. “A cidade tem alma, porque é animada pelas pessoas, muito mais do que pela arquitectura. É a alma que caracteriza o local e o torna identitário. E a política é a arte do possível, a arte de gerir as vontades de toda a gente”. E sobre arte, “é tudo o que nos retira de um local, para nos levar para outro local diferente, que não tem que ser bonito. A arte não tem que ser bonita. Tem que nos transportar de um tempo para outro. É, talvez a par do conceito de Deus, a maior criação da humanidade”.

Já a “política é a gestão do dia a dia” e “aquilo a que hoje se assiste um pouco por toda a Europa é ao desaparecimento de cidades que outrora já se assumiram como grandes potências históricas, Beja é uma delas”. “As cidades perdem habitantes, massa crítica, artistas, perdem o público desses artistas, perdem quem ensina e quem aprende”, continuou Bruno Ferreira, frisando o quão importante é o papel dos cidadãos na manutenção das suas cidades e no grau de exigência para com os poderes executivos. “Seria interessante retornar ao Ágora, enquanto espaço livre de encontro e discussão” entre cultura e política, expressão máxima da esfera pública.

Concordando com a observação, Pedro Abrunhosa abordou o fenómeno das redes sociais que “fomentam o afastamento social e não a agregação social”, estabelecendo uma analogia com as palavras de Paulo Barriga, ao constatar que se assiste a uma (re)tribalização - um afastamento social premeditado, como se de tribos se tratasse, no maior retrocesso humano possível, em que os elementos de um mesmo grupo se reconhecem por características, ideias e ideais comuns, excluindo ou mantando os seus dissemelhantes. Segundo Pedro Abrunhosa, “as redes sociais só servem para gostar daquilo que já gostávamos, porque o algoritmo nos mostra aquilo que já conhecemos. A muralha à nossa volta revela-se ainda maior, porque deixamos de ter a percepção de que o outro existe. A incompreensão e a intolerância polarizam as pessoas, afastando-as cada vez mais”.

Já na recta final, e em opinião unânime, os elementos do painel defenderam que “é na cultura que os portugueses encontram razão para sustentar a sua autoestima”, tendo Pedro Abrunhosa definindo cultura como “tudo aquilo que necessita da mão do homem para existir. É o grande suporte do combate à ignorância”. E define-nos, tal como “o plástico define o século XX, porque isso também é cultura”.

Por seu lado, a arte acontece “quando pensamos em coisas que já não conseguimos colocar por palavras e nos silenciamos. Um silêncio de espanto perante uma Obra. Nenhuma língua traduz ou reproduz a emoção sentida, nem nunca será capaz de a explicar. Só explicam a arte, o silêncio e o espanto, sendo a arte o sítio para onde a linguagem escoa através do pensamento, do acto e da produção”.

 

Arte, Cidades, Alma – Aquilo que nos conecta.

Artigo de Rita Palma Nascimento



Alentejo ...porque o horizonte é infinito .... Entrevista Filipe Campêlo

  Falar de Filipe Campêlo é falar de alguém multifacetado, com pensamento desenvolvido e visão estratégica. Quer contar-nos um pouco acerc...