sexta-feira, 31 de março de 2023

Alentejo ... porque o horizonte é infinito ... Entrevista Fátima Santos

 Professora, escritora, amante de Arte, Fátima Santos tem na língua Portuguesa o pilar do qual são feitos os dias.

Pode dizer-se que a Fátima transpira palavras, já que, além dos tempos lectivos, publicou cinco livros em 2022.

Como olha para o actual ensino da Língua Portuguesa nas escolas?

Desde a implementação dos Programas de Português de 2002, os alunos trabalham diferentes competências (leitura, escrita, oralidade, gramática e educação literária), paralelamente ao desenvolvimento de competências de cidadania. Apesar de terem sido feitas algumas alterações, posteriormente, esta continua a ser a essência da aula de Português e os autores canónicos mantêm-se, na generalidade. Desde 2017, a Legislação prevê que se realizem projetos de articulação curricular, em tempos de autonomia e flexibilidade curricular, e estes também se constituem como estratégias que contribuam para o desenvolvimento das competências mencionadas e vão ao encontro de uma mudança de paradigma que mais se adeque aos nossos tempos. O principal problema é o excesso do número de alunos por turma, e o número de turmas e de burocracia e outras tarefas por professor, o que dificulta que sejam realizadas mais atividades de escrita criativa, por exemplo, porque já temos muitos instrumentos de avaliação para elaborar e corrigir, restando pouco tempo para a realização de textos de temas e géneros livres e outras atividades de complemento curricular.

O Acordo Ortográfico não é um dilema para os alunos, porque já foi implementado há muito tempo e as aprendizagens são realizadas por manuais que estão em conformidade com o mesmo. O maior problema é que, em geral, os jovens leem pouco e comunicam muito por mensagens abreviadas, o que leva a que tenham um vocabulário muito reduzido.

 

O papel do professor, muitas vezes, determina a vocação do aluno, tendo uma importância preponderante nas suas escolhas.

Em que medida os “seus meninos” são influenciados pela professora-escritora-mulher-cidadã e que paralelo estabelece entre essa influência na escola de hoje, com a sua experiência pessoal ao longo dos anos?

Quer queiramos ou não, somos sempre influenciados pelos nossos professores. Eu lia bastante e essa era uma forma de ocupar o tempo livre. Hoje, as solicitações e interesses dos jovens são diferentes. Recordo-me perfeitamente do nome de quase todos os meus professores e daqueles que mais me marcaram e contribuíram para a construção da minha personalidade. A minha professora de Francês, por exemplo, ensinou-me a gostar da música francesa e da arte plástica. É natural que a minha forma de olhar o mundo também se projete nos meus alunos, como acontece com qualquer professor. Um dos livros que publiquei foi prefaciado por um ex-aluno meu, o Hugo Cunha Lança, que já é doutorado e professor no ensino superior. Em Seara poética, o Hugo menciona o nome de vários professores que o marcaram e refere que a Professora Fátima Santos (...) “está insofismavelmente tatuada no meu devir, pessoal e profissional”. No dia do lançamento de Um acaso na Praia dos Cinco Reis, o Daniel Sanina, um exímio poeta e também meu ex-aluno, na impossibilidade de estar presente no evento, enviou-me uma carta com um dos seus poemas, do qual transcrevo um excerto “Vislumbrei um tesouro que.../ Espero adquirir a curto prazo/ E vou por certo deliciar-me.../ Pois sei que é um troféu.../ Daqueles que vão até ao céu!/ Sei bem que nos entendemos.../ Cá de longe.../ Professora minha, Fátima Santos.../ De poesia em mil encantos!”. É claro que fico muito orgulhosa por saber que as emoções perpassam o tempo e que toquei a sensibilidade de alguns jovens, que, apesar da distância e do tempo, me recordam desta maneira. E esta é uma situação comum a tantos outros meus colegas, porque a escola é um espaço de humanidade, onde se cruzam tantas realidades e tantos contextos que é impossível não levarmos na bagagem experiências, influências e sentimentos partilhados.

 

Nota-se na Fátima uma preocupação relativa aos seus públicos-alvo, quando publica um livro. Um acaso na Praia dos Cinco Reis dirige-se a um segmento mais novo. Qual foi a sua motivação ao pensar este livro?

A minha motivação para Um acaso na Praia dos Cinco Reis foi o atual contexto sociocultural do Alentejo, onde se cruzam pessoas de várias nacionalidades, devido às questões das migrações, o que impõe uma reflexão sobre a forma como olhamos o outro. E o outro poderemos ser nós, quando há, por exemplo, uma catástrofe natural que nos obriga a mudar de espaço e a confrontarmo-nos com uma vida nova, despojados dos nossos bens, o que pode suceder a qualquer pessoa. Por outro lado, a inclusão deve contemplar o respeito mútuo e é importante veicular as nossas raízes e tradições, o que facilita a aprendizagem de uma língua e leva a uma melhor compreensão e aceitação das diversidades culturais. 

 

Na sua opinião, as plataformas digitais e a imensa oferta disponível, actualmente, distraem as crianças e os jovens da descoberta da leitura, do cheiro do papel, do gosto de entrar numa livraria e caminhar entre prateleiras e estanteria?

Sim, as plataformas digitais têm vantagens pela rapidez com que pesquisamos informação ou comunicamos pessoal e profissionalmente, mas roubam tempo à intimidade com o livro, à fruição do cheiro e do toque no papel, que, para mim, ainda continua a ser muito importante. Cheirar um livro novo é maravilhoso, quase consigo senti-lo, enquanto lhe estou a responder, tão impregnada tenho esta sensação.


“Contemplo a beleza

Das folhas da Natureza

Ímpar Singeleza”

“Nesta solidão

Entre fragas e planuras

As minhas agruras”.

Excertos do seu livro Palavras Tecidas pela Vida.

Que paralelismo traça entre a natureza presente nas suas obras, a simplicidade, e a poesia de origem japonesa expressa nestes haikais?

Gosto de ler Paulo Leminski, escritor brasileiro que cultivou bastante este género poético, e comecei a escrever uns haikais por brincadeira. Quando me apercebi, tinha escrito vários, indo ao encontro da etimologia da palavra haikai, vocábulo composto por duas palavras da língua japonesa: hai (gracejo) e kai (realização). Seguindo o modelo dessa forma poética tradicional do Japão, tento transmitir, metaforicamente e com simplicidade, pequenas mensagens, recorrendo, em geral, a elementos da Natureza que me inspiram.


Reportando-nos ao seu poema “Natal Alentejano”, integrante do livro Seara Poética, a alma alentejana encontra-se muito bem expressa nos versos que o compõem.

“É Alentejo com certeza

É a alma portuguesa

As vozes que o cante entoam

E as violas e concertinas que soam

Neste chão tão sagrado

De tradição e história povoado

Pelo Menino Deus abençoado”

Têm sido, a nossa alma, a nossa cultura e aquilo que somos tratados condignamente?

Creio que a nossa alma e a nossa cultura são tratadas condignamente e muito amadas, havendo cada vez mais pessoas a prezar o nosso “vagar”, nesta correria e ambição humana desmedidas que põem o mundo em convulsão. O cante alentejano foi elevado pela UNESCO a património imaterial da humanidade, a nossa Paz, a nossa paisagem, a nossa gastronomia e o nosso artesanato são muito apreciados por quem nos visita. No entanto, temos um riquíssimo património histórico-cultural que pode ser mais valorizado e disponibilizado aos residentes e aos visitantes, nomeadamente espaços religiosos que não são apenas lugares de culto, mas riquíssimos repositórios culturais. É neste aspeto que creio que seria importante uma boa coordenação dos espaços museológicos e religiosos que se poderiam constituir como grandes atrativos para o turismo.

 

“Alentejo … Porque o horizonte é infinito”. Este é o tema da nossa revista.

Na sua opinião, é preciso alargar esse horizonte para que se torne infinito?

Excelente tema, pois é tão amplo o horizonte do Alentejo, que nele cabem os grandes sonhos de qualquer pequeno homem ou de qualquer pequena mulher. Temos inúmeras potencialidades que permitem conjugar o moderno e o tradicional. Haja vontade política para tornar este paraíso ainda mais apetecível e com ofertas que permitam uma condigna qualidade de vida a quem o habita, a quem o visite ou a quem queira aqui fixar a sua residência.

 



 

 

 

Sem comentários:

Enviar um comentário

Alentejo ...porque o horizonte é infinito .... Entrevista Filipe Campêlo

  Falar de Filipe Campêlo é falar de alguém multifacetado, com pensamento desenvolvido e visão estratégica. Quer contar-nos um pouco acerc...