quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Conversamos com Ana Carla Faísco

 

A Ana é arquitecta de profissão a trabalhar actualmente na Câmara Municipal de Serpa. Enquanto jovem que saiu de Beja para adquirir competências profissionais, a exemplo de tantos outros, e foi estudar para o Porto, tendo posteriormente regressado a Beja.

Quer estabelecer-nos um paralelo entre o ir e o voltar e as razões inerentes?

O apelo que senti para estudar arquitetura veio naturalmente acompanhado da decisão de sair de Beja e do Alentejo. Na altura as escolas públicas de renome eram as de Lisboa e Porto e a minha candidatura acabou por “calhar”na Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto. Apesar de todos os meus amigos terem optado por Lisboa e Algarve (o que me deixou na altura bastante receosa e triste), o Porto acabou por se revelar uma cidade incrível que guardo com muito carinho no coração… também assim aprendi que o desafio de viver em locais completamente estranhos nos traz tantas oportunidades e o que importa é estarmos de mente e coração abertos e com certeza encontramos pessoas e locais com que nos identificamos e criamos mais e mais memórias… ganhamos “mundo”! A dada altura surge no programa curricular o estágio que podia ser desenvolvido em qualquer local do país, e aí o Alentejo falou mais alto… não me foi aliciante ir trabalhar para um grande atelier de arquitetos no Porto (e tantos que havia!) mas senti uma vontade de aplicar o que aprendi na região de onde sou natural. Colocar-me ao serviço público foi na altura uma opção consciente mas que muitos dos meus colegas não compreenderam. Para mim fazia todo o sentido, sempre me interessei mais pela arquitetura vernacular do que a monumental, perceber como as pessoas viviam na suas casas, que necessidades tinham e como encontraram as soluções… também o desafio de desenhar espaço público e contribuir para o bem-estar de uma população. E lembro também em férias de vir a Beja e andar pelas ruas com a cabeça levantada para olhar os edifícios de alto a baixo, ruas que conheci toda a vida mas agora ganhavam outros significados! Quis perceber melhor o meu Alentejo e também não queria ser mais um número na trágica estatística dos jovens que abandonam esta região, ainda por cima na minha área havia nessa altura um déficit de arquitetos que me permitia ter trabalho… e assim surgiram contatos com a câmara municipal de Serpa, que me acolheu em estágio durante o ano letivo em 1999/2000. E após 17 anos e muitos outros desafios profissionais, sempre em autarquias, eis que numa feliz coincidência regresso a Serpa… vivo em Beja e desenvolvo uma atividade privada em Alcaria da Serra (Vidigueira), é uma triangulação na qual me sinto muito feliz e finalmente consegui juntar a família, o amor e a realização profissional!

No decurso do seu percurso profissional sentiu a necessidade de alargar o âmbito da sua actividade a uma área que embora estando relacionada com a sua formação académica, se reveste de características completamente diferentes.

A Mosaicos d’Alcaria nasceu dessa sua necessidade/inquietação.

Quer falar-nos um pouco deste seu projecto?

Sou arquiteta e desde há muito apaixonada pelos mosaicos hidráulicos: cimento colorido de cores vibrantes e que de forma tão genuína decoravam o chão das casas do Alentejo. Quando em 2012 comprei uma casa antiga para reabilitar, tive muita dificuldade em encontrar soluções em Portugal, que não exigissem deslocação à fábrica e com poucas garantias de prazos de entrega. Porque não tornar uma paixão numa forma de vida, que ainda por cima eleva a tradição e o design português? Senti este apelo de me lançar numa aventura rumo à libertação artística e criativa, contribuindo ainda para o fortalecimento da nossa identidade cultural. No final de 2013 nasceu a marca Mosaicos d'Alcaria, impulsionada pelo concurso de empreendedorismo da Associação Acredita Portugal, que de entre mais de 14.000 projetos, premiou a ideia como uma das 150 semifinalistas e para mim, acabou por ser uma verdadeira plataforma de formação online, que me obrigou a pensar a sério nesta ideia que me perseguia há uns anos! Estruturar objetivos, procurar e estudar a concorrência, definir estratégias de marketing, planear e implementar estudos de mercado, pensar em protótipos para testar a adesão ao produto. O local escolhido para sediar o Atelier foi a casa dos meus avós maternos, também eles em tempos empresários com “venda” e “loja” (taberna e mercearia), em Alcaria da Serra, linda aldeia do concelho da Vidigueira. A experiência tem sido ótima e esta casa é um sítio com uma energia incrível… os mosaicos parecem pertencer-lhe desde sempre! Os clientes visitam um atelier na aldeia, familiar, autêntico e esteticamente apelativo. Num futuro próximo a casa terá também alojamento turístico para visitantes da aldeia, ou para os participantes dos workshops que o Atelier tem intenção de promover, potenciando os recursos endógenos desta característica aldeia do Alentejo. Nos Mosaicos d’Alcaria os sonhos dos clientes ganham vida através da assessoria técnica com simulações e desenhos de infinitos padrões e combinação de cores para revestimento de chão ou paredes, mas não tratamos o mosaico hidráulico como um simples material de construção... está associado a lifestyle e aos conceitos de bem-estar e contemporaneidade. Acredito que o mosaico hidráulico é um produto que vem do passado mas é do futuro, garantia de durabilidade, identidade e decoração únicas.

Para desenvolver qualquer actividade criativa, seja ela um projecto de arquitectura, seja o desenho de um mosaico, é necessário um certo ambiente de paz e tranquilidade.

Concorda?

Sem dúvida! Penso contudo que esta procura se reveste de diferentes características de pessoa para pessoa, o que é verdadeiramente importante é a tranquilidade interior que nos permite que o pensamento criativo cresça e nos direcione para outras atividades que não as tarefas normais do dia-a-dia.

Considera que se vivesse num grande centro populacional lhe seria mais difícil ter momentos de inspiração com a mesma qualidade? Porquê?

É uma questão aparentemente fácil de responder, mas… para quem já teve experiências de vida em grandes centros urbanos, sabe que há uma variedade de ofertas que não temos acesso na nossa região. São também elas inspirações que vamos absorvendo e que depois são importantes no processo criativo que desenvolvemos nos tais ambientes mas calmos e tranquilos. Considero sinceramente que o ideal é viver em família neste Alentejo em que o tempo corre de outra forma, e sempre que possível, dar umas “escapadinhas” a cidades frenéticas e estimulantes… é um equilíbrio necessário, só paz e sossego deixa-nos demasiado confortáveis e a inquietação do espírito é importante!

A Ana é uma pequena empresária que arriscou mas cujo reconhecimento é já evidente. Os seus mosaicos viajam pelo país, estão presentes em inúmeros espaços, compõem armários de recordações de muitas pessoas de renome, e são um património seu e da região, que desta forma é amplamente divulgada.

Da imensidão de mosaicos que tem feito, quer destacar-nos algumas peças que considere mais especiais? Qual o significado que têm para si?

A dada altura senti que os mosaicos hidráulicos não são só um material de construção, daí que a ideia empresarial inicial da fábrica de mosaicos se tenha ajustado ao longo destes 5 anos e é agora o Atelier de mosaico hidráulico “Mosaicos d’Alcaria… casas com Alma!”. Rapidamente me apercebi nas feiras e exposições onde participei que as pessoas tinham uma ligação afetiva a estes quadrados de cimento colorido 20x20cm das casas do sul… as memórias da casa dos avós, a casa na aldeia onde cresceram… e comecei a olhar para eles de forma individual e a levantá-los do chão para que pudessem de novo ir para dentro das casas das pessoas como um símbolo das suas memórias. O Atelier tem vindo a afirmar-se na área decorativa, integrando os mosaicos em peças utilitárias para a casa (quadros, descanso de tachos, tábuas de queijo, mesas, cabides) com ou sem gravações de texto e imagens. O assumir do Atelier vs Fábrica teve um impacto bastante positivo na evolução da empresa, tendo sido lançado um novo serviço de criação de painéis de arte urbana, do qual destaco uma rotunda na baía do Seixal que me deixa bastante orgulhosa, cujo promotor foi a câmara municipal, um conjunto escultórico composto por um muro revestido a mosaicos gravados e de padrão alusivos ao tema “Seixal Saudável”, complementado por uma estrutura em ferro de 5 metros que retrata os moldes com que são feitos os mosaicos hidráulicos. Também os mosaicos individuais gravados têm aumentado a procura, são ofertas com fotografias e composições gráficas de texto e imagens que se misturam nos padrões coloridos e surpreendem sempre quem os recebe. Familiares na época natalícia, comemorações de aniversários e casamentos, eventos culturais, ofertas de grupos corais e entidades coletivas diversas… e muitas personalidades nacionais também já foram “mosaicados”! - Marcelo Rebelo de Sousa, António Costa, Cristina Ferreira, Tim, João Gil, Vitorino ou Pedro Abrunhosa.

Em termos de mercado e divulgação do seu trabalho enquanto artesã dos Mosaicos d’Alcaria, sente algum tipo de constrangimento por estar numa área geográfica interior e distante dos grandes centros?

Não é uma logística fácil, mas as atuais ferramentas tecnológicas permitem a flexibilidade necessária no contato com os clientes... é no entanto inegável que as deficientes infraestruturas de transportes, públicos e privados, criam um distanciamento físico que impede o acesso facilitado ao Atelier. Por algumas vezes sou abordada por potenciais clientes que perguntam se não tenho pontos de venda em Lisboa ou noutros locais mais próximos… não é esta a nossa estratégia comercial, gosto de manter os mosaicos neste ambiente familiar e tranquilo de uma aldeia no Alentejo, dar a conhecer o nosso território a quem vem à procura dos mosaicos. Saem de Alcaria com um belo pão alentejano cozido em forno de lenha e um almoço de panela servido no café do lado. Todos os dias nos confrontamos com dificuldades nas nossas vidas e percursos profissionais, mas esta região é o nosso berço e mantenho a esperança de que o país nos trate com a dignidade que merecemos. O Baixo Alentejo é uma região com grande potencial patrimonial e humano que está permanentemente expectante de investimentos estruturantes que nos dêem o suporte para um desenvolvimento que com certeza saberemos promover. Não nos falta criatividade, paixão e vontade de gritar Alentejo!

 “Alentejo… um abraço que nos une, um sorriso que ilumina, um sonho a realizar…”

Como é que a sua alma artística define esta frase?

Respondo com uma quadra popular presente no cante alentejano e que expressa o meu sentimento por esta região. Apesar das dificuldades, o Alentejo mantém uma orgulhosa alma que nos cativa a cada passeio e a cada pôr-do-sol dolente, um consolo que não se esquece:

“Alentejo é qualquer coisa

Que trago dentro de mim

Onde o meu pensar poisa

Um amor que não tem fim.”



 

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